A Anta e os Trilhos do Chão Cortado - Erdna Ziul Sedranreb

A Anta e os Trilhos do Chão Cortado
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No coração do Mato Grosso do Sul, onde o cerrado abraça os campos e o som do vento dança entre ipês e carandás, vivia uma anta chamada Amana. De andar firme e olhar sereno, Amana era conhecida por percorrer os mesmos caminhos desde filhote.

Ela conhecia cada curva do rio Miranda, cada sombra das figueiras, cada cheiro que subia da terra molhada após a chuva. Aqueles caminhos não estavam em nenhum mapa — mas estavam gravados na memória do seu coração.

Certo dia, enquanto caminhava pela trilha do lobo-guará, Amana sentiu um cheiro estranho no ar. Era o cheiro do metal quente, misturado ao som distante de martelos e vozes humanas. Aquilo era novo, e Amana, inquieta, seguiu o som.



Ao alcançar a clareira, viu o que nunca imaginara: a floresta havia sido cortada em linha reta. Árvores derrubadas, buracos no chão e um trilho de ferro que brilhava sob o sol. Um homem de capacete acenou para ela, mas Amana se escondeu atrás das palmeiras.

À noite, sob o luar, ela desabafou com o corujão-do-campo:

Cortaram o chão como se ele fosse papel. Meu caminho… desapareceu.”

 

O corujão, com olhos que pareciam ver mais do que a floresta, respondeu:

“Quando o chão é cortado, não é só a terra que sangra. Mas também a memória de quem a pisa.”

 


Nos dias seguintes, a construção avançou. Os trilhos da nova ferrovia cortavam rotas antigas, atravessavam córregos, e afastavam os sons dos bichos. A anta se viu diante de um dilema: insistir no caminho antigo ou encontrar um novo.

Amana tentou seguir como sempre. Mas quase foi atropelada por uma máquina que rugia como onça de aço. Voltou para trás, assustada. “Esse chão não me reconhece mais,” murmurou.

Buscando orientação, foi até o tatu-canastra, que vivia numa clareira próxima. Ele a recebeu com olhos tristes.

“Amana, o ambiente mudou. Mas ainda somos parte dele. Precisamos nos adaptar, ou seremos apenas lendas nas histórias dos mais jovens.”

Amana refletiu. “Adaptar não é esquecer, Tatu?”

“Não, minha amiga. Adaptar é lembrar com sabedoria.”

Naquela noite, ela sonhou com sua avó — uma anta enorme, de pelagem mais clara, que lhe dissera um dia:

“O caminho é o que seus passos criam. Mas se o mundo muda, seus passos também devem aprender a ouvir.”

Ao acordar, decidiu buscar novos caminhos. Acompanhada por um tamanduá-bandeira do Mato Grosso, chamado Naru, ela começou a mapear passagens seguras, onde a ferrovia não cruzava.

“Vamos ensinar os filhotes a atravessar longe dos trilhos”, disse Naru.

“E criar clareiras onde possam descansar sem medo,” completou Amana.

A cada dia, encontravam novos desafios: córregos canalizados, barulho constante, árvores que não voltariam. Mas também encontravam resistência viva — como as capivaras que se abrigavam nas beiras do rio Paraguai e as emas que aprendiam a cruzar as clareiras ao amanhecer.

Em uma reunião sob o ipê-amarelo, Amana falou para os jovens:

“O impacto dos trilhos é real. Eles cortam mais do que o chão — cortam hábitos, cortam o som da floresta. Mas também nos chamam à responsabilidade.”

 

Um sabiá-laranjeira, curioso, perguntou:

“Responsabilidade de quem, Anta?”

 

“De todos. Dos humanos que constroem e de nós, que resistimos. Cada um tem seu papel neste novo ambiente.”

A anta propôs então uma ideia: marcar trilhas alternativas com cheiros e sinais — como folhas amassadas, pedras viradas, troncos riscados com o casco. Uma linguagem viva, que não dependia da fala, mas da escuta do mundo.

As cutias do Paraná aprenderam rapidamente. Os veados-catingueiros da Bahia começaram a seguir os sinais. Até o jacaré-do-papo-amarelo do Pantanal passou a respeitar as trilhas sinalizadas.

Um dia, um grupo de humanos observou a trilha marcada. Viram que os animais estavam evitando os trilhos. Em silêncio, instalaram placas com desenhos simples. E construíram passagens elevadas com vegetação.

Era pouco, mas era um começo. Os humanos estavam ouvindo.

Amana ficou em silêncio por dias. Depois chamou os bichos e contou uma antiga história.

“Minha avó dizia que a floresta era um tecido. Quando alguém puxava um fio, o tecido inteiro tremia. Mas se muitos fios se entrelaçassem de novo, mesmo remendado, o tecido voltava a ser inteiro.”
Todos ouviram. Todos entenderam.

Um dia, um filhote de tamanduá perguntou:

“Amana, ainda dói ver o chão cortado?”
Ela olhou para os trilhos ao longe, depois para as trilhas novas que haviam criado.

“Sim. Ainda dói. Mas agora, há também um novo caminho. E ele nasce de cada passo que escolhemos com consciência.”

O sol se punha devagar. A sombra dos ipês se alongava. Os trilhos brilhavam ao longe, mas ao redor deles, o verde voltava a crescer.

A floresta nunca seria a mesma — mas também não estava perdida.

Amana andava devagar. Mas agora, seus passos não eram apenas de anta: eram de todos os que aprenderam a resistir sem se destruir.

Ao longe, um grupo de humanos desenhava uma placa: “Passagem da Anta Amana — Aqui, a natureza traçou seu caminho.”

E os trilhos, que um dia cortaram, agora também conectavam — não só lugares, mas lições.


Moral da fábula
Quando o ambiente muda, não basta resistir com raiva nem ceder em silêncio. Adaptar-se é a arte de desenhar novos caminhos onde antes havia corte — e de lembrar que o verdadeiro trilho é o que nos liga à vida com respeito.


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