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Maritaca era conhecida por todos na comunidade da Vila Ipê, um bairro arborizado na zona sul de São Paulo, não apenas por sua plumagem verde vibrante e seu bico curvado como foice, mas principalmente pelo seu barulho incansável. Desde o amanhecer até o silêncio do fim da tarde, ela fazia questão de cantar, gritar, repetir frases aprendidas nas janelas dos apartamentos e, principalmente, interromper qualquer momento de calma com sua algazarra tropical.
As outras aves da região — como o sabiá-laranjeira, símbolo de São Paulo, e o juriti, vindo dos bosques tranquilos do interior paulista — começaram a se incomodar. Mas Maritaca não via problema. “A vida é movimento, é som!”, dizia ela. “O silêncio é para os que não sabem viver.”
Um dia, um velho tamanduá-bandeira que havia migrado do cerrado goiano para escapar das queimadas aproximou-se da árvore onde Maritaca costumava empoleirar-se. Seu passo era calmo, suas palavras mais ainda. Ele esperou a maritaca terminar de repetir pela quinta vez o toque de celular que aprendera.
— Maritaca, por que tanto barulho? — perguntou ele, com voz serena como o vento da tarde.— Porque é assim que mostro que estou viva! — respondeu ela, com orgulho.— E você acredita que viver é apenas fazer-se ouvir? — indagou o tamanduá.
Essa pergunta ecoou na cabeça da maritaca, mas ela logo sacudiu as penas e voou, ignorando o que julgava ser “filosofia de bicho velho”.
Na semana seguinte, algo curioso aconteceu. Um bando de araras-azuis do Pantanal passou por São Paulo em migração. Suas cores eram intensas, mas seus cantos, contidos. Elas sobrevoaram a cidade sem perturbar ninguém, deixando um rastro de beleza e paz.
1. O Papagaio-Charão e o Segredo do Galho Partido - Erdna Ziul Sedranreb
2. A Tartaruga-de-Couro e a Areia que Sumia - Erdna Ziul Sedranreb
3. A Onça-Pintada e os Três Ecos - Erdna Ziul Sedranreb
4. A Anta e os Trilhos do Chão Cortado - Erdna Ziul Sedranreb
5. O Macaco-Prego e a Fruta que Não Era Sua - Erdna Ziul Sedranreb
6. O Tucano-de-Bico-Preto e a Promessa no Alto da Árvore - Erdna Ziul Sedranreb
7. A Lontra e os Rastros na Lama - Erdna Ziul Sedranreb
8. O Cágado e o Peso da Culpa - Erdna Ziul Sedranreb
9. O Tamanduá-Bandeira e a Travessia do Asfalto - Erdna Ziul Sedranreb
10. A Maritaca e o Silêncio do Fim de Tarde - Erdna Ziul Sedranreb
11. O Segredo da Árvore que Sussurra - Erdna Ziul Sedranreb
12. As Pegadas do Lobo Solitário - Erdna Ziul Sedranreb
13. O Canto do Pássaro que Não Voava - Erdna Ziul Sedranreb
14. A Jornada Lenta da Tartaruga Valente - Erdna Ziul Sedranreb
15. O Leão que Dividia o Sol - Erdna Ziul Sedranreb
16. O Barco do Peixe Sonhador - Erdna Ziul Sedranreb
17. A Abelha que Encontrou o Caminho - Erdna Ziul Sedranreb
18. A Girafa que Aprendeu a Ouvir - Erdna Ziul Sedranreb
19. O Elefante que Esqueceu o Medo - Erdna Ziul Sedranreb
20. O Tesouro Escondido da Raposa Esperta - Erdna Ziul Sedranreb
21. A Formiga que Dançava com o Vento - Erdna Ziul Sedranreb
22. O Corvo que Colecionava Sombras - Erdna Ziul Sedranreb
23. O Peixe que Nadava Contra a Corrente - Erdna Ziul Sedranreb
24. A Árvore que Contava Estrelas - Erdna Ziul Sedranreb
25. O Rato e o Labirinto de Folhas - Erdna Ziul Sedranreb
26. A Pedra que Rolou Sozinha - Erdna Ziul Sedranreb
27. O Pássaro que Não Voava Alto - Erdna Ziul Sedranreb
28. A Tartaruga e o Rio Paciente - Erdna Ziul Sedranreb
29. O Coelho que Escutava o Vento - Erdna Ziul Sedranreb
30. A Jornada do Pequeno Girassol - Erdna Ziul Sedranreb
Maritaca, invejosa com o respeito que os outros animais demonstraram às araras, decidiu seguir o bando e perguntar:
— Por que não gritam como eu? Não querem ser notadas?
Uma arara respondeu com um tom calmo, quase como um sussurro de sabedoria:
— Ser notada não é o mesmo que ser lembrada com carinho. Nós preferimos ser memória boa do que ruído incômodo.
A maritaca voltou pensativa, mas no dia seguinte já estava novamente gritando frases humanas e imitando alarmes de carro. Era como se nada tivesse acontecido.
Foi então que, numa tarde especialmente quente, um filhote de tatu-bola, vindo das matas baianas, apareceu perto da praça onde moravam. Estava assustado, longe da mãe, e tremia de medo. Todos os animais se calaram, tentando tranquilizar o pequeno.
Todos, menos a Maritaca.
Ela falava, voava em círculos, fazia barulho. O filhote, assustado, se encolheu ainda mais. O tamanduá se aproximou novamente e disse:
— Às vezes, o maior gesto de respeito é o silêncio.
A frase atingiu Maritaca como uma tempestade atinge uma árvore frágil. Pela primeira vez, ela percebeu o peso do que causava ao seu redor.
Nos dias seguintes, Maritaca passou a observar. Notou como os sons do bairro mudavam no fim da tarde: o vento entre as folhas, o tilintar distante de um sino, a risada suave de uma criança. Começou, então, a guardar suas palavras. Em vez de gritar, passou a sussurrar. Em vez de interromper, passou a ouvir.
A comunidade sentiu a diferença. A harmonia voltou. E quando ela falava — pois ainda era uma maritaca, afinal — sua voz era acolhida com alegria, pois vinha no momento certo, com a medida certa.
Certa manhã, ao conversar com um tamanduá-mirim que veio do Acre e fazia perguntas curiosas sobre o mundo, ela contou tudo o que havia aprendido. Falou sobre o poder do silêncio, sobre a força da escuta, e sobre como convivência não é fazer todos ouvirem a sua voz, mas encontrar o tom certo para estar entre os outros sem apagar os sons que já existem.
Maritaca virou uma espécie de sábia entre os animais urbanos. Seus antigos ruídos deram lugar a histórias, conselhos e, por vezes, apenas à sua presença calma em um galho qualquer, no silêncio do fim de tarde.
Moral da história
Fazer barulho não é o mesmo que ser ouvido. O verdadeiro respeito nasce quando aprendemos a ouvir os outros e reconhecemos o valor do silêncio na harmonia da convivência.