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Às margens tranquilas de um afluente do rio Tapajós, no coração do Pará, vivia uma jovem lontra chamada Luma. Curiosa, ágil e brincalhona, Luma era conhecida por todos os animais da floresta por sua inteligência, mas também por uma atitude um tanto imprudente: ela fazia o que bem queria, sem pensar nas consequências de suas ações.
Certo dia, após uma forte chuva, as margens do rio estavam cobertas de lama espessa. Luma correu e deslizou pelas poças como de costume, deixando rastros por todo lado. No entanto, desta vez, seus rastros se cruzaram com os de outros animais: uma suçuarana que caçava silenciosamente, uma preguiça que havia descido à terra firme, e até mesmo uma rara ariranha do Maranhão que visitava o rio em busca de um novo lar.
“Esses rastros não importam”, disse Luma, rindo. “A lama vai secar, o rio vai levar tudo embora.” Mas nem todos concordavam. Um velho tamanduá-bandeira do Amapá, que observava de longe, advertiu: “Nem toda marca desaparece com a correnteza. Algumas viram lembrança. Outras, consequência.”
Luma ignorou o conselho. À noite, foi dormir em sua toca, rindo das pegadas na margem. No dia seguinte, ao sair para caçar, percebeu que algo havia mudado. O silêncio era denso. As aves do sul, como o sabiá-poca do Espírito Santo, não cantavam. O peixe-boi da Amazônia não havia voltado ao lago. E seu melhor amigo, o jabuti-piranga, desaparecera.
Preocupada, seguiu os rastros na lama — os seus e os dos outros. Foi quando descobriu, com o coração apertado, que a suçuarana, desorientada por rastros sobrepostos, havia atacado a ariranha visitante. O jabuti, tentando ajudar, fora ferido e levado pelas correntezas.
1. O Papagaio-Charão e o Segredo do Galho Partido
2. A Tartaruga-de-Couro e a Areia que Sumia
3. O Macaco-Prego e a Fruta que Não Era Sua
4. A Anta e os Trilhos do Chão Cortado
5. A Onça-Pintada e os Três Ecos
6. O Tucano-de-Bico-Preto e a Promessa no Alto da Árvore
7. A Lontra e os Rastros na Lama
8. O Cágado e o Peso da Culpa
9. O Tamanduá-Bandeira e a Travessia do Asfalto
10. A Maritaca e o Silêncio do Fim de Tarde
Devastada, Luma se refugiou numa clareira onde morava um animal quase mítico da floresta: o jacu-cigano, ave nativa do Amazonas, conhecida por sua sabedoria ancestral. O jacu ouviu atentamente e disse: “Toda escolha que fazemos deixa um rastro. Não na lama, mas nos caminhos dos outros. E às vezes, esses rastros viram cicatrizes.”
Tomada pela culpa, Luma decidiu fazer algo que jamais pensara antes: limpar, reparar, refazer. Visitou a ariranha ferida, levou folhas cicatrizantes do jenipapo e cuidou dela até que pudesse nadar novamente. Procurou o jabuti rio abaixo, resgatando-o entre os galhos de uma figueira-do-brejo. Pediu perdão à suçuarana por tê-la confundido.
Durante semanas, percorreu as margens do rio, educando filhotes de cotia, pacas e até o escorregadio muçum do Tocantins sobre a importância dos rastros — não os físicos, mas os das atitudes. Ela criou trilhas seguras, sinalizou áreas perigosas e ouviu histórias de outros animais sobre erros, perdões e recomeços.
Numa dessas conversas, ouviu do mutum-do-sudeste: “A vida é como a lama do rio. Parece que tudo vai sumir com o tempo, mas a memória do que fizemos fica gravada nas margens do coração dos outros.”
E assim, Luma tornou-se uma lenda. Não pela sua esperteza inicial, mas pela sua transformação. Os bichos vinham de longe — do cerrado goiano, da caatinga baiana, do pantanal mato-grossense — para ouvir a estória da lontra que aprendeu a ler os rastros da alma.
Hoje, nas escolas da floresta, os filhotes de tatu-canastra, anta e até o tímido morcego-pescador do Acre aprendem: não é a força da chuva que apaga os rastros, mas a força das escolhas que os mantém vivos ou os transforma em caminhos de esperança.
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